Ultimamente as semelhanças entre café e vinho têm sido cada vez mais enfatizadas, principalmente após o surgimento do conceito dos cafés especiais. No entanto, existem diferenças muito grandes entre estas duas bebidas como a evolução e sofisticação que o mercado dos vinhos já atingiu, equivalendo a uma homérica distância de aproximadamente 20 anos à frente do mercado de café, e o seu serviço.
Vinhos de alta qualidade são elaborados e engarrafados em sua origem, ganhando, em seguida, espaço em adegas e mesas, cujo serviço pode ser executado a partir da necessidade de um período de descanso ou não. Alguns vinhos atingem sua maturidade e o auge de suas características sensoriais após alguns anos de descanso, que permitem a finalização de complexas reações bioquímicas que formarão compostos que têm a maravilhosa missão de tornar cada gole numa experiência muito agradável.
O hábito cada vez difundido de uma taça de vinho acompanhando refeições é fruto de um impressionante trabalho de educação do consumidor, que desmistifica conceitos e, ao mesmo tempo, demonstra toda a grandiosidade que essa bebida possui.
Harmonizações, origens, varietais e safras ou vindimas fazem parte de um vocabulário que está se tornando comum às pessoas, estimulando-as a consumirem melhor porque acabam conhecendo mais sobre o produto. No caso do café, em alguns casos, é produzido e preparado nas fazendas, selecionado por peneira e com grande uniformidade dos grãos, quando ganha estampas que identificam sua origem nas tradicionais sacarias de juta. Observe que diferentemente do vinho o café normalmente sai das fazendas como matéria-prima, e que antes de chegar no momento do serviço passa por uma fase intermediária que é o processo de torra.
É sabido, também, que a avaliação sensorial do café é feita com o café depois de torrado, porém com um ponto de torra mais claro. A metodologia tradicional de avaliação sensorial, como a definida na COB - Classificação Oficial Brasileira, é feita com uma torra denominada "clara" ou "leve" obtida com poucos minutos sob o calor de uma forte chama dos tradicionais torradores de tambor de laboratório.
Há uma razão para esse procedimento.
Como o foco dessa metodologia é a verificação de "defeitos" da bebida, onde se incluem sabores como o do ácido acético (que é o vinagre, conhecido no mercado como "ardido"), dos compostos fenólicos (que lembram o creosol, de cheiro medicinal e sabor amargo como fel, chamados de "rio" e "riado"), estes decorrentes de transformações bioquímicas dos grãos, e de sabores que tenham origens externas ao grão, como contaminações por óleos, por exemplo, a torra clara permite rápida percepção destes sabores. Como o processo de torra é interrompido antes dos famosos "pops", que são os sons do processo de formação da água como resultado das reações de pirólise (piros = chama; lise = quebra) e sua evaporação, as substâncias de sabor do café acabam não sendo totalmente desenvolvidas, facilitando a identificação dos defeitos da bebida.
Enquanto isso, a metodologia da SCAA - Specialty Coffee Association of America tem como objetivo identificar todo o potencial de qualidade de um café e, por isso, o ponto de torra recomendado é o mesmo dos produtos comerciais.
O ponto de torra é tão importante na avaliação sensorial e, também, no serviço ao consumidor, que foram desenvolvidos equipamentos de avaliação da coloração da torra que funcionam baseados no princípio de reflexão de feixes de luz incidentes no café, sendo o mais conhecido no mercado o fabricado pela empresa Agtron.
O ponto de torra é verificado através de uma escala de coloração que tende a zero para as mais escuras, enquanto que para as mais claras tende a cem.
Como são equipamentos sofisticados e caros, foi desenvolvido um conjunto de discos de cores pela SCAA e a empresa Agtron com tecnologia gráfica de altíssima resolução e que acaba sendo muito útil para muitos profissionais. Observe na foto abaixo três discos representando, respectivamente da esquerda para a direita, os seguintes pontos: #95, que é o mais claro, #65, empregada em torra média-clara, e o #45, que é um ponto de torra considerado moderadamente escuro.
A metodologia SCAA de avaliação sensorial recomenda que a torra seja finalizada com ponto entre os discos #65 e #55, geralmente empregado nos produtos industrializados dos países consumidores do hemisfério norte.
No processo de torra, o café cru é colocado no torrador de tambor, por exemplo, quando este está pré-aquecido, sendo usual a temperatura por volta de 240°C. Ao preencher parte do tambor, o café cru provoca uma queda natural da temperatura interna até que o sistema entre em equilíbrio, o que ocorre por volta dos 125°C. A partir daí inicia-se um interessantíssimo processo físico-químico, quando o calor é absorvido pelos grãos de café por vários mecanismos. Após alguns minutos, quando o restante da água livre, ou seja, aquela que não está ligada às células, evapora, os grãos começam a apresentar uma delicada alteração em sua cor, passando de esverdeado a um tom palha. Nesse ponto, quando um leve aroma de massa de pão fermentado surge e o grão adquire coloração entre os discos #95 e #85 pode ser retirado para uma clássica avaliação sensorial pela metodologia COB.
Caso o processo tenha continuidade, os grãos começam a apresentar uma coloração castanha e se notas aromáticas florais estiverem presentes, estas podem ser percebidas. O processo de torra é semelhante à chamada destilação seca, cujo objetivo é o de se extrair o maior número de componentes aromáticos existentes num material, usualmente madeiras ou a hulha, através do calor. Assim, conforme o grão vai absorvendo energia, progressivamente sua coloração vai se intensificando ao mesmo tempo em que um fantástico desfile de aromas se forma.
Por volta dos 190°C podem ser ouvidos os primeiros "pops", sons semelhantes ao do estouro da pipoca, mas que neste caso indicam a água formada pela reação de pirólise evaporando-se. Esta reação é a quebra de moléculas de açúcares que ao reagir com o oxigênio presente formam gás carbônico e água. Ao mesmo tempo, açúcares mais complexos começam a se "quebrar", gerando outros mais simples, conferindo um aroma muito adocicado nesta fase. Até aqui, em geral, o processo percorreu aproximadamente 80% do tempo total da torra e há um breve momento de "silêncio".
Quando o segundo conjunto de "pops" é ouvido e que acabam lembrando os traques de festas juninas, a reação de pirólise é dominante e a fumaça se altera para uma coloração esbranquiçada. Neste ponto, a temperatura fica por volta dos 215°C e os grãos adquirem uma coloração que corresponde ao disco #55. O aroma se modifica novamente, desaparecendo o adocicado, que dá lugar a notas mais densas, como o de algumas frutas secas, como amêndoas, e toques de caramelo, porém por um breve momento. É que a reação de pirólise se torna contínua, não necessitando mais de uma fonte externa de calor para se manter, e o cheiro de gás carbônico começa a ser dominante, caracterizado pelo seu toque "seco" e discretamente ardido. Excelentes espressos são preparados com grãos com este ponto de torra, bem como grandes blends para o serviço de coador.
Caso o processo de torra prossiga, os óleos fluem para a superfície dos grãos o que pode acelerar as reações de carbonização, conferindo coloração intensamente escura. Provavelmente, o termômetro indicará temperatura em torno de 225°C ou um pouco mais. Não é recomendável que a torra chegue a esse ponto, algo equivalente ao disco #35 ou até #25, pois os óleos na superfície são mais suscetíveis à oxidação, levando ao cheiro e sabor de ranço, além do amargor típico de queimado. Da mesma forma, este tipo de torra deixa de ser adequado para o serviço de espresso porque a oleosidade superficial provoca problemas nos moinhos. Por outro lado, óleo rançoso é sinal de que, no caso do espresso apenas um medíocre creme poderá se formar...caso se forme!
A torra mais intensa acaba fazendo diminuir a percepção de defeitos de bebida como uma moderada adstringência por conta da intensificação do sabor amargo. Apenas para lembrar, a percepção humana para o sabor amargo inicia-se numa impressionante proporção de 1 para 2.000.000 em relação à água! Isto significa que se apenas uma única gota de algo amargo for diluída em 2 milhões de gotas de água, ainda assim esse sabor será sentido. E, por isso, acaba suplantando outros sabores.
Lembre-se: o sabor amargo é contraponto ao sabor doce.
Torras mais claras tornam mais perceptíveis os ácidos naturais dos grãos do café, como o ácido cítrico, presente na laranja e limão. À medida que a torra se intensifica, o sabor ácido entra em equilíbrio com o sabor adocicado dos açúcares presentes, para, depois, gradativamente diminuir sua intensidade e dar presença a sabores mais densos. Algumas substâncias amargosas são formadas nesta fase em decorrência de quebra de moléculas de grande estrutura. Deve ser entendido que cada origem tem um processo de torra específico, da mesma forma que aplicação que se deseja para um determinado blend define o seu ponto de finalização.
A ABIC - Associação Brasileira da Indústria de Café lançou o PQC - Programa de Qualidade do Café, que tem como objetivo indicar ao consumidor através de claras identificações nas embalagens dos produtos industrializados a que padrão de qualidade um determinado produto atende. Parte dos normativos para a avaliação dos produtos desse novo programa tem como referência os protocolos da SCAA, entidade com a qual a ABIC se conveniou recentemente.
Como parte desse esforço voltado à difusão do conhecimento, a ABIC lançou uma pequena régua onde reproduz os discos do conjunto SCAA-Agtron, destacando os pontos de torra mais presentes nos cafés brasileiros.
Pode-se observar o elegante ton-sur-ton que a escala apresenta:
Clique na figura para ampliá-la.
Portanto, há uma grande arte no processo de torra, onde verdadeiros artesãos podem extrair notas de aroma e sabor inusitados, propiciando num correto serviço uma grande experiência sensorial ao consumidor.
Assim, o mercado de café se estreitará cada vez mais com o do vinho, o que poderá ser, sem dúvida, um excelente motivo para um brinde!
Com uma bela xícara de café, é claro...