A atual crise econômica vivida pelo Brasil não nos cansa de revelar aspectos trágicos. Se já não bastasse o enorme prejuízo derivado de comportamentos nada republicanos de protagonistas nas arenas econômica e política, teremos que arcar com os efeitos em cadeia dissipados por todo o sistema. O raciocínio é simples: pense em qualquer indústria de peso em nosso país, tentando diagramar seu funcionamento. Em algum momento, eis que surge a caneta de um burocrata pertencente ao poder público, cujas assinaturas podem criar oportunidades de negócio quase instantâneas. Trata-se do sonho de qualquer empreendedor, não?
Ocorre que, conectado ao feliz beneficiário das benesses proporcionadas pela "caneta", estão inúmeros outros empresários. Em tempos de bonança, cadeias de suprimento inteiras vão sendo criadas, assinatura após assinatura. Não parece haver nada de mal nisso; afinal, uma das funções do Estado, argumentarão muito economistas, é o de estimular o crescimento econômico. O problema é quando tais "incentivos" se amparam em uma tênue relação com a realidade, inflando expectativas e menosprezando riscos em nome da concretização de triunfos no jogo político. E, talvez já esteja claro, assim vivemos durante boa parte do período de "vagas gordas" da última década.
De fato, inexiste indústria capaz de sobreviver para sempre remando contra as regras do mercado. Mais dia, menos dia, a conta chega, levando empregos e, eventualmente, dezenas de empresas com menor grau de eficiência. Uma das grandes tragédias da atual crise resulta justamente dos erros de cálculo resultantes dessa dependência da "caneta". Quantas empresas não se expuseram a um grau maior de endividamento do que o nível saudável em condições normais, apenas porque "incentivos" irrealistas assim o estimularam? Quantas decisões de negócio terão sido tomadas não porque os preços relativos o justificavam, mas em resposta a um acordo obscuro selado por terceiros?
Nos últimos anos, muitas empresas investiram pesado para fornecer bens e serviços a outras firmas poderosas e cheias de contratos. Conforme o noticiário nos mostra, entretanto, muito dessa pujança custava caro ao contribuinte. Por serem tão dependentes do estímulo público, muitas organizações parecem dispostas a pagar o que for necessário para contar com apoio irrestrito de reguladores e estimuladores. Da mesma forma, a concentração de poder na mão de tão poucos acabou por criar uma corrida sem escrúpulos pelo privilégio de empunhar as "canetas". Agora que o castelo de cartas ruiu, a todos os pequenos fornecedores em muitas de nossas cadeias de suprimento restam dívidas altas a pagar e a incerteza quanto à retomada da economia.
Ironicamente, quanto maior o cerco contra os principais responsáveis pela atual confusão, menor o espaço na imprensa para discutir o drama vivido por milhares de pequenas e médias empresas brasileiras. Estamos cometendo um grande erro: se há alguém sem culpa no cartório, é todo aquele que foi levado a tomar decisões de negócio equivocadas porque, em algum momento, uma "caneta" recriou parcialmente a realidade. Talvez convenha ao Estado, tão deslegitimado perante o público, oferecer políticas capazes de mitigar tais problemas. Ou, ao menos, promover reformas que evitem um novo ciclo de frágeis estímulos. Afinal, mais dia, menos dia, a "caneta" trocará de mão. O que menos queremos é outra leva de escolhas questionáveis entre os membros da nossa iniciativa privada.