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No século 19, o famoso escritor americano Mark Twain escreveu sobre o ocidente americano, “uísque é para tomar, água é para brigar”. Depois de mais de 100 anos de irrigação, os californianos encontram-se em conflito sobre água, sem paralelo na história. Os problemas manifestam-se de formas variadas. O mais evidente é a incapacidade de um dos maiores sistemas de transposição de água do mundo entregar água em quantidade e qualidade suficiente para a agricultura.
Como foi chegar a este ponto? A orientação geográfica e hídrica, o contexto histórico e uma elaboração dos impactos da irrigação e transposição das águas ilumina as causas que contribuíram para tal. Estas informações serão úteis para evitar semelhantes enganos no grande avanço de empreendedorismo na agricultura irrigada brasileira.
A Califórnia é um dos Estados mais áridos dos Estados Unidos. A maioria da precipitação cai no extremo norte e leste, longe do Vale Central, onde existe hoje a grande maioria da agricultura irrigada (Fig. 1). Entre a Serra Litoral e a Serra Nevada, o Vale Central é composto de duas bacias hídricas principais: os Rios Sacramento e San Joaquin (Fig. 2). Com a grande expansão e ocupação das terras do ocidente dos Estados Unidos, nos séculos 19 e 20, ficou evidente que o sucesso agrícola em grande escala somente seria possível pela transposição das águas do norte para o sul do Estado. Durante a pior crise financeira da história americana da década de 1930, tiveram início construções de grandes projetos de transposição de águas. Durante quatro décadas de crescimento agressivo, foram construídas mais de 1.400 represas e milhares de quilômetros de canais e aquedutos para transportarem água para irrigação.
A agricultura expandiu-se para mais de 2.9 milhões de hectares irrigados e uma renda bruta agrícola que hoje é de mais de US$ 34 bilhões anuais. A Califórnia produz a metade das frutas, hortaliças e castanhas do país e é o primeiro Estado em renda agrícola.
Durante a época de crescimento agressivo, o foco foi primeiramente construções de projetos para aumentar a produtividade agrícola. Impactos colaterais receberam atenção mínima. O processo de desenvolvimento foi tão intenso, que, na década de 1960 a 1970, começaram a faltar bacias com condições propícias para construção de barragens, levando as entidades responsáveis a iniciarem projetos em lugares inadequados sob o ponto de vista geológico e pedológico. Isso coincidiu com o aumento do movimento a favor do meio ambiente na década de 1960, e a passagem de mais de vinte leis para proteção ambiental durante a década de 1970.
Enquanto isso, depois da 2ª Guerra Mundial, os Estados Unidos encontraram-se numa posição única no mundo de capacidade industrial. Pela disponibilidade de água de um sistema estadual desenvolvido originalmente para agricultura, na Califórnia isso resultou em grande prosperidade comercial e industrial. A renda agrícola também cresceu, mas a porcentagem da renda bruta estadual do setor agrícola caiu de 50%, em 1940, para 2%, em 2000.
Diante da nova consciência ambientalista, reconheceram-se problemas que resultaram do crescimento agressivo. Por exemplo, restam menos de 10% da área de pântano que existia no século 19. Hoje, é difícil encontrar área com vegetação nativa no Vale Central. Partes do Rio San Joaquin secaram e populações de peixes foram dizimadas. Os ambientalistas, providos de novas leis, conseguiram enfrentar o governo e exigir mais atenção nos impactos dos projetos de transposição das águas e irrigação. Consequentemente, esses e outros impactos e o surto do movimento ambientalista levaram o Estado a entrar numa época de conflito na década de 1980, permanecendo até hoje.
A incapacidade de resolver os conflitos de maneira suficiente resulta de vários fatores. Fundamentalmente, hoje existe um sistema de transposição das águas extremamente comprometido. Durante os anos de crescimento agressivo, não houve construções e planejamentos para fatores que hoje afetam a capacidade do sistema de entregar água prometida aos usuários agrícolas. Os impactos ao meio ambiente são uns dos mais sérios.
A transposição das águas na Califórnia depende do Delta (Fig. 2). Os problemas no Delta são emblemáticos nessa época de conflito. Água
do norte do Estado tem que passar pelo Delta para irrigação no Vale central. O bombeamento de água do Delta (e outros fatores como agrotóxicos) tem causado a diminuição do número de peixes (Fig. 3), que então resultou em restrições legais de vazão. Sabe-se que as populações de espécies ameaçadas já estavam diminuindo nos anos 70 (Fig. 3).
A agricultura irrigada impacta a qualidade das águas superficiais e subterrâneas e o setor agrícola está sendo cada vez mais regulamentado.
A Figura 4 ilustra os problemas de qualidade de água do Estado. Trabalhos no Vale San Joaquin revelam problemas sérios de salinidade e drenagem (Deverel e Gallanthine, 1989; Dubrovsky et al., 1993). Milhares de hectares agrícolas estão sendo retirados de produção por falta de onde descarregar água de drenagem, por causa das restrições na qualidade da água superficial. A modelagem hidrológica ajuda a integrar dados, entender os processos hídricos e desenvolver práticas de manejo para minimizar impactos (Belitz e Phillips, 1995, HydroFocus, 2000).
Mais de 100 anos de dados de vazão demonstram mudanças climáticas que afetam a transposição.
Planejamento e construção foram feitos diante de um regime pluviométrico estável, em relação aos anos 50 até o momento. Hoje, precipitação e vazão nem sempre conformam com as regras de operações desenvolvidas durante a primeira metade do século 20. Por exemplo, com o aumento da temperatura, mais precipitação cai, agora como chuva em vez de neve, e as barragens das represas soltam água que antes era armazenada como neve que derretia lentamente e era liberada das represas no verão, quando necessitada pela agricultura. Usando um estudo de modelagem climática, Lettenmeir et al. (1990) previram este fenômeno, na década 1980.
Imerso na adrenalina cultural de crescimento econômico sem precedente, houve pouca capacidade de considerar impactos na qualidade de água, efeitos biológicos, mudanças climáticas e drenagem, durante o planejamento e construção dos projetos. Estes impactos e efeitos estão-se manifestando décadas depois. Esta falta de planejamento racional resultou numa infraestrutura e num momento de operação que estão sendo difíceis e dispendiosos para modificar. Muitos conflitos são levados à justiça, onde predomina a ciência combativa, ou seja, consultores, cientistas e técnicos usando dados e análises para apoiarem sua própria posição diante do juiz e do júri. Falta liderança científica centralizada e uso adequado de bons dados nas decisões de gerenciamento dos recursos hídricos.
Há semelhanças com o crescimento agressivo das décadas de 1930 a 1960, nos EUA. A lição principal californiana para o Semiárido brasileiro é que o uso de tecnologia adequada para o aumento de produtividade e transposição das águas necessita ser balanceada com atenção aos possíveis impactos ambientais, aos efeitos regionais hidrológicos, à qualidade de água e à possível influência de mudanças climáticas. Na Califórnia, apesar de muito se saber, durante a época de desenvolvimento agressivo, a necessidade de drenagem, distribuição de solos salinos e redução de populações de peixes, não houve capacidade de considerar suficientemente os conhecimentos. Um problema principal era a falta de avaliar e quantificar as incertezas e imprevistos.
A única certeza absoluta é a mudança. O grande professor de física de solo da Universidade da Califórnia de Davis, Dr. Donald Nielson, disse em uma palestra que assisti em 1982: “para sermos bons cidadãos ambientais precisamos sempre perguntar qual é o tamanho de nossa incerteza”. A aquisição e interpretação de bons dados biológicos, físicos e químicos beneficiam hoje a Califórnia a reconhecer os impactos que frequentemente se manifestam décadas depois da entrega de água ao projeto. O desafio para desenvolver uma agricultura sustentável será o aumento de produção sem provocar impactos graves que ameaçam a produção.
Este é o caso, onde, hoje, na Califórnia a produção agrícola está sendo ameaçada. Na agricultura do Semiárido brasileiro já existem algumas análises e publicações que descrevem potenciais impactos. Por exemplo, Brito et al. (2010(a) sumarizou potenciais impactos no uso de fertilizantes, defensivos e pela salinidade. Ferracini et al. (2001) analisaram o risco de contaminação por pesticidas no Vale do São Francisco.
Identificaram vários produtos usados que têm potencial para contaminar águas subterrâneas e superficiais, apesar de ainda serem poucos os trabalhos científicos que comprovam impactos (Giogo et al., 2010). A irrigação e a transposição das águas modificam a hidrologia e o ambiente significativamente no Semiárido. Na Bacia Hídrica do Rio São Francisco, Maneta et al. (2009) usaram modelagem hidrológica para avaliar os potenciais efeitos de expansão da irrigação. Concluíram que, possivelmente, ocorra diminuições de vazão que possam afetar a viabilidade do ecossistema e a diluição de contaminantes.
Em contraste com os EUA, o uso da tecnologia no Brasil para irrigação e fertilização localizadas ajudará muito a minimizar a drenagem e problemas de qualidade de água e salinidade.
Hoje, na Califórnia, essas tecnologias estão sendo adotadas lentamente diante de evidências de aumentos significantes de produção, o potencial de minimizar a salinidade na zona radicular e evitar drenagem aonde existe lençol freático raso e salino (Hanson et al., 2009).
Considerando o potencial para impactos e a história californiana, planejamento e desenvolvimento racional no Semiárido brasileiro procederão com uma identificação e priorização dos potenciais impactos e implementação de gerenciamento para minimizá-los com base em análises científicas. Efeitos na quantidade e qualidade de água e salinização de solos parecem ser de alta prioridade. Brito et al. (2010(b) descreveram conflitos pelo uso das águas e constataram área salinizada significante no Semiárido brasileiro.
O desenvolvimento de redes regionais de coleção e análise de dados físicos, químicos e biológicos é importante para estabelecer a base corrente e detectar impactos de futuras mudanças. Estes dados também são essenciais para criar modelos que possam ser usados para entender processos, sintetizar dados, avaliar possíveis benefícios e minimizar impactos de expansão da agricultura irrigada. A criação de modelos e a coleta e análise de dados precisam ser bem pensados e planejados para ser úteis e não excessivos. Na Califórnia, são gastos milhões de dólares anuais em dados de mínima utilidade por falta de coordenação e liderança técnica.
Considerações finais
A experiência de transposição das águas e a irrigação na Califórnia demonstram a necessidade de considerar os impactos desde o início. A omissão de considerá-los resultará em um preço mais alto para resolução no futuro e ameaças à sustentabilidade. Uma consequência de transposição das águas foi o aumento da prosperidade nos setores comerciais e industriais, que geram mais uso de água e potencial para conflito. A prosperidade tem gerado uso excessivo e luxuoso de água nos EUA (Glennon, 2009).
Bons dados, análise e modelagem científica, curiosidade e discussão aberta sobre as incertezas são ferramentas eficazes para se ter um diálogo significativo sobre os impactos ao meio ambiente.
Argumentos e discussões sem dados e análise adequada ou que se baseia em ciência combativa são antiprodutivos.
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*Artigo publicado primeiramente na Revista ITEM, da ABID, e cedido para publicação no site CaféPoint pelo autor, Steve Deverel
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