Foto ilustrativa: Erico Hiller/ Café Editora
Conforme qualquer pesquisa na Internet rapidamente nos mostra, reality shows têm seus exércitos de ardentes defensores e críticos implacáveis. É interessante notar, de qualquer maneira, que boa parte do mau humor acumulado se deve ao conteúdo apresentado em algumas de suas versões. Há quem odeie a ideia de reunir 15 pessoas em uma ilha deserta, ou que não suporte as competições de aspirantes a artista, apenas para citar dois potenciais alvos. Poucos, entretanto, direcionam sua raiva ao formato trazido por tais programas.
A percepção apresentada acima pode resultar de uma visão distorcida da realidade. Diga-se de passagem, entre as intenções desse texto não está a tentativa de analisar a essência de um reality show. Diante da concorrência de analistas com maior competência para discutir seus fundamentos, juízos de valor serão evitados. Os próximos parágrafos apenas buscam chamar a atenção para um interessante uso do formato no leste da África. O objetivo: disponibilizar informações relevantes para agricultores familiares.
O reality show em questão se chama Shamba Shape Up. Resultado da cooperação entre pesquisadores filiados a diversos centros, empresas, governos e uma produtora, busca levar conhecimento por meio de uma receita inusitada. Em cada um dos seus episódios, uma propriedade rural é visitada pelas câmeras do programa. Em meio ao diálogo com o apresentador, desafios são identificados: erosão do solo, baixa produtividade, etc. Na sequência, dá-se a chegada dos especialistas, cujas dicas auxiliam não apenas o agricultor visitado. Estima-se que o programa tenha mais de dez milhões de seguidores no leste da África.
Aos agricultores, a interação com o Shamba Shape Up não se resume ao papel de telespectadores, no entanto. Usando outras tecnologias recentemente disponíveis nas zonas rurais do leste da África, como telefones celulares, é possível interagir com o programa. Naquilo que é um dos aspectos mais fascinantes do projeto, indivíduos interessados podem requisitar o envio do conteúdo didático discutido no programa. Interação, nesse sentido, não se limita a táticas comuns, como eleições que influencie os rumos do reality show. Apropriar parte do conhecimento ali gerado certamente faz mais bem para a auto-estima dos telespectadores do que a participação por meio de um serviço pago. Claro, antes é necessário oferecer algo que possa mudar a vida das pessoas.
Muito pode ser dito sobre Shamba Shape Up. Em primeiro lugar, o êxito do programa nos ajuda a avaliar um argumento comum, de que a programação oferecida pela televisão aberta brasileira reflete as preferências dos seus consumidores. Trata-se de uma opinião frágil, sobretudo porque boa parte de seus defensores também costumam elogiar a criatividade e a competência daqueles que preenchem a grade horária diariamente. Ora, se TV se resume a auscutar o que a audiência pede e entregar sem censo crítico algum, valeria a pena discutir qual o sentido de canais optarem - e pagarem - por profissional X e não Y. Em grande medida, o que falta é coragem de testar novas fórmulas ou preencher as existentes com um recheio distinto.
Por outro lado, faz-se necessário reconhecer que determinados formatos caíram no gosto popular. Gostemos ou não do desfecho, a realidade é que milhões de brasileiros estão dispostos a assistir um reality show. Por que não pensarmos em modelos que maximizem a transferência de conhecimento relevante e, ao mesmo tempo, ampliem a interação com os telespectadores? Vendo valor na informação disponibilizada, indivíduos poderão aliar entretenimento com a aquisição de habilidades para sua rotina. Indo além, sentirão que são levados em consideração, algo fundamental em um país onde a participação nos processos econômicos e políticos é, para milhões de cidadãos, apenas teoria.
Casos como o do Shamba Shape Up oferecem um caminho interessante para o futuro. Ao preencherem formatos televisivos de grande popularidade com um informação útil para a rotina de milhões de agricultores africanos, o reality show conseguiu romper uma série de barreiras. A principal delas: demonstrar que, na televisão atual, há espaço para inovar tanto nos formatos quanto nos conteúdos. Não é pouco, tendo em vista o marasmo apontado por muitos na televisão aberta brasileira.
O programa, ademais, nos obriga a lembrar que, por trás da centralidade dos aparelhos de TV nas residências ao redor do mundo, costumam existir concessões públicas. Logo, é recomendável maior diálogo e cooperação para que canais ofereçam conteúdo condizente com objetivos com alto grau de aderência em uma determinada sociedade. Por exemplo, ninguém se oporia à afirmação de que "famílias devem ter acesso à maior informação possível para seu planejamento financeiro". Por que não usar as televisões para oferecer mais sobre o tema?
Finalmente, o exemplo aqui descrito serve como um alerta para os pesquisadores brasileiros. É fundamental refletirmos se nossas "boas intenções" estão dando os frutos esperados. Ou, para dizer de outra forma: estaremos divulgando da forma mais efetiva o conhecimento que, acreditamos, poderia ajudar milhões de pessoas a ter uma vida melhor? Olhar o lado menos otimista da história também é importante. Fazendo a lição de casa, talvez cheguemos à conclusão de que uma parcela do conteúdo produzido atualmente por cientistas sociais tem pouca ligação com a realidade imediata de seus potenciais usuários. Certo ou errada a hipótese, só saberemos se aumentarmos a interação com a população.